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quarta-feira, 25 de maio de 2011

Meus Escritos - A Gárgula



Estranhos, inusitados acontecimentos que mais
pareciam saídos de uma mente doentia, aconteceram
sem aviso naquela noite em que suas memórias esmaeciam aos
poucos. Um estranho ser que da torre de uma velha igreja, bradou
que o levaria por estranhos e surreais caminhos que revelariam os
momentos de seu passado, as suas memórias. Ele com
receio do tal ser, deu meia volta e com pressa retornou ao lar,
assustado com aquela medonha aparição.




Pensava. E pensando concluiu que um homem sem
memórias era muito triste. Não conseguia
entender a presença daquela horrível criatura na
torre da igreja, pois apesar de velha e esquecida, merecia
respeito. Definitivamente, a igreja não era o lugar dela
e ele merecia respeito também, pois as memórias
eram suas! E ele pensava, "...Meus atos e fatos são
minha propriedade e responsabilidade, então vou

recuperar minhas memórias...".

Naquele instante, armado de coragem decidiu sair
à procura da gárgula que ousou atrapalhar seu confuso
viver, que embora inútil, era dele. Sentia medo do
confronto com ela, feia, sem sentimentos e desprovida
de respeito, mas era preciso ir pois já estava
esquecendo coisas básicas tais como, quem ele era.
Ah, mas dela ele não ia esquecer não.






Tão logo decidiu, agiu rápido, saindo à procura
de suas memórias. Bem, não tão rápido. Primeiro ele
procurou um boteco e bebeu uns tragos de
coragem. Acalmou a dor na barriga no sujo banheiro
do bar, e foi para casa trocar a roupa de baixo
pois havia sujado a cueca de tanto medo. Aí sim, foi
ao encalço da criatura. Está rindo, é? Se ri é
porque não teve tal contratempo, não sabe o que
é o vazio, a dor, a falta de boas lembranças

e o pavor que a criatura causava.

E quase anoitecendo, estava de novo na frente da igreja.

Em um salto do alto da torre, a gárgula pariu na sua frente e
com sua altissonante voz perguntou: pronto para 

ir em busca de suas memórias? Se estiver, não tenha medo
basta fechar seus olhos que te guiarei até elas.

Seguindo a gárgula, ele foi conduzido à infância.
Visitou os mundos que habitou na cidade
de Rio de Janeiro. Quantos sonhos. Em um deles,
lá estava o abacateiro, alto e majestoso, onde em seu
topo uma espécie de tablado com grades ele
construiu, para ali se deitar sob o azul do céu
e o brilhar quente do sol, embalado por suaves
ventos. Ali, nunca estava só. Capitão Marvel, Zorro,
O Fantasma, Tim Tim a narrar suas aventuras ao
redor do mundo, até o Brucutu , lá das selvas de Mú,
todos personagens dos gibis que lhe eram
emprestados, que conduziam seu viver aos mundos
aos quais pertenciam a magia de uma infância
feliz, mas solitária.

Mas aos poucos, lembranças indesejáveis de
castigos e surras, abandono em casa de parentes
como se banido do seio da família houvesse sido,
encobriram o azul do céu, o brilho do sol e o
vento calmo e quente, trazendo frio e tempestade.
Pediu para continuar a busca. A gárgula ria e com
enigmático olhar, alçou voo à sua volta
parecendo atender seu pedido de continuar.

Fechou os olhos e a seguiu.




Essas recordações o deixaram triste, mas ele seguiu
em frente passando pelos mundos de sua
adolescência. A gárgula o levou até Teresópolis,
onde ele reviu um mundo de sonhos maravilhosos,
cheio de promessas, como ele sempre desejara.
Mundo e sonhos que conquistara sozinho
sem ajuda, sem orientação no qual muito bem
se saiu. Ele tinha 14 anos, idade ótima para
planejar o futuro. Boas lembranças. Sua primeira
garota, namoro firme, fazer amor, pela primeira
vez e chegar ao clímax. Inesquecível lembrança.

O cantar, iniciando carreira como profissional
em uma casa noturna, dirigir um carro
aos 17 anos sem destino por belas estradas.
O cais da Praça Mauá, Rio de Janeiro de onde
levava para Teresópolis, perfumes franceses e
relógios suíços contrabandeados.
Ele era feliz, se sentia capaz de o mundo
dominar. Sua lembranças o levaram também à Magé,
cidade interiorana do Estado do Rio de Janeiro,
mundo onde conheceu uma bela mulher que, com
seu amor, por oníricos caminhos o conduziu.
Amar, cantar, se sustentar sozinho. Aqueles mundos
o fizeram sentir o prazer das conquistas, das realizações.


Mas como em sua infância, sombras,
más recordações trouxeram amargas manitas
às doces lembranças. Peso demais. Novamente partir.
A gárgula o espiava, sobrevoando à rir seu mundo
de lembranças, o trazendo de volta à realidade.
Sem se dar por conta a seguiu sem nada dizer. 

Ainda vazio de muitas recordações estava.




Vida adulta. Talvez ali recuperasse suas memórias.
A gárgula parou no telhado de uma construção
antiga e o observava. Estava em São Paulo, capital
do estado. Era um imenso mundo. Seu primeiro
casamento e divórcio após três anos, sonho desfeito.
Suas viagens pelo Brasil à cantar. Como gerente
comercial de uma grande rede de lojas, o sucesso
alcançado, a emoção do primeiro carro zero,
comprado no ano de 1974 com o salário de apenas
um més de trabalho. E sobraram muitos cruzeiros.
Sucesso ao cantar, sucesso profissional.
Bons tempos. Boas lembranças.

A gárgula o olhou, riu, estendeu suas asas e
o conduziu a outro mundo, Piracicaba, no interior
paulista. Lá, foi o ponto de partida para realizações
distantes, outros mundos, cantando o Amor e
a Vida nas páginas da Música Popular Brasileira.
Em Piracicaba ficaram sua loja e fábrica de móveis
rústicos e colonias, O Candieiro, ótimos e fiéis
amigos, companheiros de pescarias, festas
alucinantes e longas viagens de moto.
Muitas recordações, muitos momentos que lhe
trouxeram ótimas lembranças e saudades.

Mas, como se por desagradável rotina, pesarosas
recordações se intrometeram em seu retorno,
trazendo mágoas, tristeza, encobrindo com nuvens
cinzentas seu sonhar, toldando as cores e
o brilhar das lembranças . O peso foi tanto que
ele as deixou para trás. Ainda sem suas memórias,
vazio de boas recordações, não teve escolha senão
continuar. Olhou para a gárgula notando que, algo
em sua feia cara mudara, parecia querer algo dizer.
Cansado, com tanto peso em seu viver,
a seguiu em seu louco voar. Voltou ao presente.
E suas memórias? Que fora feito delas?

Abriu os olhos e subitamente o cenário mudou.

Estava em pé frente à igreja em que tudo começara, e
ao olhar seu relógio viu que apenas poucos minutos passaram.
Sentiu em seus ombros, o já conhecido peso de sua vida.

A gárgula, na sua frente o assustou. O olhava fixamente, olhos
vermelhos, como a perguntar se entendera a viagem.
Mas o que ela queria? Quem era aquele horrendo
ser que agora o fitava? Porque o fez percorrer seu passado?
Parecendo ter lido seus pensamentos, o ofuscou com branca luz e
em seguida com voz clara e suave, lhe revelou quem era.





" Sou seu viver. Você esqueceu um fator muito
importante em sua existência. Apesar de amar a vida e
o mundo que criava para si, nunca levou em conta
que você não estava só. Dependia de outros assim como
outros dependiam de você, para que metas
fossem alcançadas. Sua vida depende exclusivamente de
suas ações e assim, como agora me vê nessa minha real forma,
você, apenas você, pode transformar em beleza e cores
sua vida. Apesar de não pertencer a esse mundo, é nele
que você tem a obrigação de existir e ser útil.

Não apenas colha, semeie e distribua seu colher,
assim sua vida será o que sempre sonhou.
Ainda não é tarde. Você é eterno. Procurei mostrar
que erros e acertos são partes normais e essenciais
de sua evolução. Aprenda com esse passeio
por seu passado e sem medo, seja e faça feliz,
quem a seu alcance estiver. "





Após essas palavras,  novamente gárgula,
ela voltou à torre de onde saíra e
em sua imobilidade, ficou a fitar o vazio.
Ele, secou as lágrimas lentamente, continuando
seu caminhar decidido a não mais valorizar
mágoas e tristezas e sim, os momentos bons que a vida
agora lhe oferece. Como por encanto, suas memórias
retornaram e com elas, um novo sentido para a vida.
Não mais tinha medo de viver.


carlos miranda (betomelodia) 




fontes
imagens: arquivo pessoal - texto: carlos miranda (betomelodia)
base das pesquisa: arquivo pessoal / meus escritos

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